Famosos que estiveram no show de lançamento de "Recanto", trigésimo disco de carreira de Gal Costa


Créditos: Manuela Scarpa/Photo Rio News

Ela desafinou! Gal Costa, a maior voz da MPB já na segunda música, a enigmática “Tudo Dói”, comete uns deslizes em algumas notas. Como a música é cheia de dissonâncias e tem um caráter mais experimental, poderia até ser um certo charme tropicalista – pensariam os mais otimistas – na abertura da temporada paulistana da turnê “Recanto”, nesta quinta-feira (24), no HSBC Brasil.

Mas aí veio o seu clássico dos anos 60, “Divino, Maravilhoso”, e sua rouquidão se mostrou pronunciada. Tensa, ela evitou cantar alguns trechos, mas mesmo assim desafinou em outros. Como boa discípula de João Gilberto, Gal sabe que no peito dos desafinados também bate um coração e resolveu abrir logo o jogo.

“Estou com uma faringite, laringite, e outras ites, me recuperando. Mas vamos fazer um show bonito”.  Neste momento não só ela e a banda estão tensos, a plateia fica em suspensão. Falando do palco com o diretor do show e mentor do álbum Recanto, Caetano Veloso, ela divide com o amigo de longa data: “Você também tá nervoso”. Estávamos todos.

Como seria este show que fala essencialmente do cantar, seja de forma explícita como “Força Estranha” ou implícita como a setentista “Mãe”? Como a máquina sonora perfeita de Gal Costa – agora debilitada – lidaria com os agudos e graves de um repertório difícil e exigente musicalmente? O próprio Caetano já tinha declarado que a voz de Gal era a mais apropriada para as bases eletrônicas, talvez limpa do peso interpretativo de muitas cantoras.

Mas foi o domínio interpretativo e a inteligência musical de Gal que fez ela virar aos poucos o jogo e emocionar uma plateia realizando um dos seus shows mais especiais.

Já na música “Segunda”, ela dominou sua rouquidão que ficou de fundo da melodia. Impossível não lembrar Billie Holiday já no fim de sua carreira que com a voz gasta, rouca pela cocaína, que conseguia trabalhar as canções com este aditivo a seu favor. Ainda tensa, Gal atrasava de forma esperta a entrada da melodia para não errar o tom no mesmo estilo da grande cantora americana.

Mas o clímax viria na sequência com outra música do álbum Recanto: “Autotune Autoerótico”. Já entendendo seus limites – e os forçando – e percebendo que poderia, assim como seu novo trabalho, ousar, Gal deixou de se intimidar com sua faringite.  Exatamente quando sua voz roçava em sua garganta, em uma música que explicitamente fala sobre o cantar em tempos eletrônicos, seu canto andou. Neste momento uma força estranha fez sua voz tamanha e a cantora foi aplaudida de pé como as divas da ópera quando alcançam notas altíssimas. Mas ali era a altíssima emoção.

Ganhou tom ainda mais dramático sua interpretação de “Minha Voz, Minha Vida” que cantou o tempo todo com a mão na garganta. Mas aí, o jogo já estava ganho. Mesmo assim, Gal não deixou de se desculpar no final e de reclamar de sua voz nos bastidores.

Ela desafinou e foi lindo. Afinal, cantar é um diálogo sobre afinação e desafinação, um comentário sobre a voz e suas possibilidades para além das tonalidades, é dar o tom do humano. A voz perfeita foi imperfeita, mas soube com a contribuição milionária de todos os erros estar para além da perfeição, transcendente. Sorte de quem pode ouví-la assim: ainda mais humana como o canto deve ser.


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