Faz pouco mais de uma semana, mas o evento é recorrente. Neymar foi alvo da torcida do Barcelona após derrota do time e ouviu insultos racistas de espanhóis. Este ano já tivemos outros casos de preconceito racial aqui no Brasil, com os mais famosos envolvendo Tinga, meia do Cruzeiro, e o árbitro Márcio Chagas da Silva, que apitava partida do Campeonato Gaúcho. O Virgula Esporte ouviu o Dr. Hédio Silva Júnior, ex- Secretário da Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo, professor de processo penal e ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Com currículo e experiência extensos, ele nos concedeu sua opinião sobre como o preconceito no futebol reverbera na sociedade.

“Tem muita gente boa que acredita que o fato de o país ser miscigenado significaria que não há discriminação. Mas o exemplo do Neymar, do Roberto Carlos (no passado recente) e outros estão aí pra provar que o indivíduo miscigenado não é identificado como branco, mas como negro. Se o miscigenado tiver aparência de branco, tudo bem, ele vai ser tratado como branco. Mas se ele ostentar um único atributo físico de negro, ele será tratado como negro. O Neymar é negro, embora ele queira ser branco”, alertou. 

O Dr. Hédio (foto acima) foi o primeiro negro a ocupar a presidência da Comissão de Direitos Humanos da OAB e atualmente coordena o programa “Direitos e Relações” no Ceert (Centro de Estudos das Relações do Trabalho), no qual trata sobre o tema “Racismo na Sociedade e no Futebol”. Para ele, é sim possível acontecer novos casos de preconceito racial e, pior, durante a Copa do Mundo, evento no qual o mundo inteiro estará olhando para o nosso país.

“Temo que manifestações desse tipo se proliferem na Copa. Primeiro, porque se trata de conduta sobre a qual paira uma sensação de absoluta impunidade. Segundo, porque as iniciativas da Fifa ou da CBF se restringem ao plano meramente simbólico. Precisamos de campanhas educativas, permanentes, com conteúdo e mobilização das torcidas organizadas”, disse.

Leia abaixo a entrevista na íntegra com o Dr. Hédio Silva Júnior:

VIRGULA ESPORTE: Você acredita na possibilidade de casos de racismo acontecerem durante a Copa do Mundo partindo de torcedores brasileiros, visto o momento que o país passa, com atos contra a Copa e manifestações para diferentes finalidades?

DR. HÉDIO: Temo que manifestações desse tipo se proliferem na Copa. Primeiro porque trata de conduta sobre a qual paira uma sensação de absoluta impunidade, isto é, as pessoas não acreditam ou desdenham da possibilidade de serem punidas. Segundo porque as iniciativas da Fifa ou da CBF se restringem ao plano meramente simbólico, a exemplo da realização de “minutos de silêncio” mas o que precisamos é de campanhas educativas, permanentes, com conteúdo, mobilização das torcidas organizadas, etc. 

Dá pra explicar o motivo de um país como o Brasil, miscigenado, ainda aconteçam esses casos de racismo. Na Alemanha, um país que tem o histórico do nazismo, isso não acontece e nem foi registrado nem um caso no Mundial de 2006, por exemplo.

Tem muita gente boa que acredita que o fato de o país ser miscigenado significaria que não há discriminação. Mas o exemplo do Neymar, do Roberto Carlos (no passado recente) e outros estão aí pra provar que o indivíduo miscigenado não é identificado como branco, mas como negro. Se o miscigenado tiver aparência de branco, tudo bem, ele vai ser tratado como branco. Mas se ele ostentar um único atributo físico de negro, ele será tratado como negro. O Neymar é negro, embora ele queira ser branco. 

A diferença entre a Alemanha e o Brasil, embora a Alemanha também enfrente problemas de racismo contra negros, turcos, etc, é que lá o Estado e a sociedade levam a sério o problema do racismo e implementaram políticas públicas e privadas de superação do preconceito. No Brasil, uma personalidade como o Felipão acredita que sequer devemos discutir o racismo. Enquanto perdurar esse tipo de mentalidade em boa parte dos formadores de opinião, os problemas continuarão acontecendo.

Os casos de racismo com o Neymar aconteceram na Espanha e recentemente. Você acha que um possível insucesso na campanha do Brasil possa ser válvula de escape para que brasileiros o discriminem racialmente, já que atualmente ele é a maior esperança do brasileiro para conseguir o título da Copa?

Ganhando ou perdendo a Copa, o importante seria uma ação mais coordenada e substantiva dos governos, em parceria com as federações, as torcidas organizadas, a sociedade civil, de modo que todos possam se empenhar num esforço pela superação do racismo. Seja nos eventos internacionais, mas, sobretudo, no cotidiano, nas escolas, na publicidade, nas novelas.

No Brasil, sempre houve aquele estigma de não utilizarmos goleiros negros no time titular. Desde Bezerra, que acabou ficando como um dos culpados pela derrota em 1950, o seguinte goleiro negro no Brasil foi somente Dida, em 2006. Qual a sua opinião sobre isso?

Ídolos negros do passado, como Pelé e Garrincha, entre outros, experimentaram o mesmo que os jogadores do presente. A diferença é que o país mudou: hoje os jogadores reclamam, protestam, abandonam partidas em sinal de protesto. De seu lado, a mídia repercute, expressa indignação, mobiliza a opinião pública.

Não se vê goleiros negros como também não se vê técnicos de futebol negros (com raríssimas exceções), comentaristas de futebol negros, isto é, as manifestação de racismo nos estádios são mero reflexo do racismo imperante na sociedade brasileira.

Esperamos que não haja, mas se houver, qual seria a melhor solução por parte das autoridades para que resolvam o assunto e que não haja uma possível piora na imagem do Brasil no exterior?

Um trabalho cotidiano, permanente, norteado para as causas do racismo e não apenas para os efeitos do racismo. Cito um exemplo simples, mas emblemático: até hoje nossas crianças não aprendem nas escolas a razão pela qual negros e brancos têm diferentes tipos de pele, de cabelo, de formato de nariz, etc. Trata-se de conhecimento que a genética disponibiliza há séculos mas que ainda não chegou no currículo escolar. Enquanto diferença for associada à inferioridade, o racismo vai continuar se manifestando nos estádios e no dia a dia dos brasileiros.


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Especialista teme que manifestações preconceituosas manchem a Copa