Você sabia que a internet comemorou quarenta anos em 2009? Tudo bem que a internet que hoje conhecemos é resultado de experiências mais recentes, mas a primeira conexão entre dois computadores, que seria o embrião da rede atual, já tem essa idade toda. Então não parece estranho que todas as listas sobre os anos 00 apontem para essa década como sendo a “década da internet”? O que aconteceu para que uma invenção antiga marcasse tanto uma época?

Talvez a chave do mistério sobre a revolução da Internet esteja no grau de liberdade que ela permite. Liberdade para criar, interagir, colaborar e distribuir músicas, vídeos, textos e outras formas de expressão cultural. Quanto mais liberdade, mais diversidade. E quanto mais diversidade, mais difícil fica se fazer um apanhado de uma década toda.

Quando se chega ao final de uma década parece obrigatório se eleger o gênero de música, filme, livro, moda que definiu os últimos dez anos. Quando se diz que a Internet definiu a cultura da última década algo diferente acontece: a internet não tem um gênero musical, um estilo literário, cinematográfico ou de moda específico. Ela está ai para que todos os gêneros e estilos possam existir e ser experimentados pelos seus usuários.

Por ser tão democrática é que boa parte das listas dessa década é cheia de contradições. Como pode a onda de revival dos anos 80 fazer parte das manifestações culturais características dos anos 00? Talvez uma explicação venha justamente do acesso a vídeos e músicas antigas que a internet proporcionou. Esses vídeos e essas músicas não nasceram da internet, assim como outros movimentos musicais e de comportamento típicos da década, como o emo ou indie, que não são específicos da internet, mas que muito se beneficiaram das possibilidades de acesso, interatividade e colaboração que a rede proporcionou.

Outro ponto comum nas listas dessa década é a oposição entre televisão e internet. O jovem dos anos 00 teria abandonado a televisão pela tela do computador. Se por um lado é verdade que certos conteúdos apenas foram possíveis por conta da abertura e das liberdades características da internet, existe uma simbiose entre televisão e a rede mundial de computadores que não pode ser desprezada. Esse é o caso do download de programas de televisão através da internet.

É certo que seriados de televisão norte-americanos, como Lost e 24 Horas marcaram essa década, mas, para boa parte dos jovens, os episódios não foram vistos na TV, mas sim no computador ou outro dispositivo de vídeo depois de devidamente (ou indevidamente?) baixados. É engraçado perceber como o produto da  televisão caiu na rede e foi responsável por boa parte do tráfego de vídeos nos últimos anos.

Ao baixar os programas de TV no computador outro hábito que certamente começa a se perder nessa década é a adequação da rotina à programação imposta por um canal produtor de conteúdo. A eventual expansão da TV digital, que é uma das promessas para os anos 10, tornaria curioso lembrar que um dia as pessoas voltavam para casa mais cedo ou se programavam para ver programas gravados no exato horário de sua exibição.

No que diz respeito à música, talvez a menção mais óbvia nas listas de final de década seja a morte do CD. Aqui é importante lembrar que a ruína é do CD, da forma de distribuição de música, e não da música em si. Aliás, musicalmente falando, a década não poderia ter sido mais diversa e sofisticada. A Internet teve um papel fundamental ao disponibilizar, pela primeira vez, um acesso à música como nenhuma loja de CD jamais conseguiria fazer. Aliás, essa é a década em que grandes lojas de disco fecharam. Contudo, o que entrou no lugar das grandes lojas foram os programas para download de músicas na internet. A década começa com o Napster saindo da cena, mas ninguém teve tempo de sentir a sua falta pois a família logo se expandiu com AudioGalaxy, Morpheus, Gnutella, Kazaa, Kazaa Lite, Soulseek, Emule, Dreamule, Limewire e todos os sites de torrent. Uma década se passou e a indústria fonográfica ainda busca uma forma de usar todo o potencial da internet para oferecer música para uma geração que se acostumou a consumir música sem ter que pagar por isso. A resposta da indústria está vindo na forma do Spotify, We7, Deezer e do Lala, recentemente comprado pela Apple. Todos apostando no “velho” streaming (velho porque é uma tecnologia que antecede o próprio Napster) como a prancha da salvação para os negócios musicais surfarem nessa nova década.

Dizer que o mundo se tornou um lugar “globalizado e competitivo” também foi moda nessa década. Mas em termos culturais, o fenômeno da produção colaborativa foi um dos grandes destaques dos últimos anos. Se é verdade que o conhecimento nunca esteve tão acessível (via Google e outras chaves de busca), foi na Wikipédia, uma enciclopédia de natureza colaborativa que o repositório de tudo que é produzido pareceu convergir. Mas não só de Wikipédia vive a colaboração na rede. A quantidade de vídeos colaborativos em sites como o YouTube mostram a importância de se contar com as habilidades e os conhecimentos de terceiros para criar algo novo. Até um DVD não-oficial dos shows que o Radiohead fez no Brasil foi produzido a partir de gravações postadas por usuários na internet (vai no Google e procura pelo nome Raindown).

Tudo isso é só para ficar na superfície do que aconteceu na década (se fossemos listar tudo o que faltou falar nesse artigo daria uma outra Wikipedia – não falamos do sexting, da cultura dos animes, das redes sociais, da 4chan e todas as outras chans, dos games online, do Ulillillia, das comunidades privadas de torrent, da Niko Niko Douga e outros vocoders pop, dos mash-ups, do mini-revival hippie que também houve na década, da morte de tanta gente importante como o J.G. Ballard, da consolidação da fama internacional do Haruki Murakami, do Wii etc etc etc). Com isso, dá para ver que a “cultura digital”, apesar de ser uma expressão que vai ficar velha rapidinho na próxima década, está só começando a mostrar seu potencial de transformar tudo em liquidificador de altíssima velocidade. Para a internet, definitivamente a vida começa aos quarenta.

Carlos Affonso Pereira de Souza é Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), é coordenador adjunto do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas e integra a coordenação do Creative Commons do Brasil

Ronaldo Lemos é mestre em Direito pela Universidade de Harvard e doutor em Direito pela USP e coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da FGV DIREITO RIO. Coordena o projeto Creative Commons no Brasil e é fundador do projeto Overmundo


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Carlos Affonso e Ronaldo Lemos: Cultura jovem na década da internet