Em setembro de 1972, o Departamento da Polícia Federal enviou um recado bastante claro a todos os jornais do Brasil: “Está proibida a publicação do decreto de D. Pedro I, datado do século passado, abolindo a Censura no Brasil. Também está proibido qualquer comentário a respeito”.

Mas nem teria sido necessário. O decreto de 28 de agosto de 1821, no qual D. Pedro I assegurava a liberdade de imprensa no país, já vinha sendo desrespeitado há anos, praticamente desde o início da ditadura militar. E se estendia também a outros canais de informação, especialmente às artes. Além de jornalistas, cineastas, atores, cantores e escritores também foram perseguidos, presos e muitos tiveram que recorrer ao exílio para garantir que continuariam vivos.

E, ao contrário do que muita gente pensa, a censura não ficou restrita aos anos 60. Apesar da lei da anistia – que liberou a volta dos exilados ao Brasil – ter sido aprovada em 1979, ainda até o final dos anos 80 muitas obras foram alteradas, ou mesmo proibidas. 

Imprensa

A insistência do então governador do Paraná, Haroldo Leon Perez, fez com que O Estado do Paraná fosse o primeiro veículo censurado. Na primeira vez em que isso aconteceu, conta o diretor de Redação da época, Mussa José Assis, o jornal deixou um espaço em branco. Mas logo foi avisado de que isso não poderia se repetir. E, pior: todos os espaços tinham que ser preenchidos de forma que os leitores não pudessem perceber a censura.

Mas o caso mais famoso, sem dúvida, foi o dos jornais paulistas do grupo Estado. No lugar onde deveriam estar as matérias censuradas, o Estado de São Paulo publicava trechos de Os Lusíadas, de Luís de Camões, enquanto o Jornal da Tarde estampava receitas culinárias. O Estado de São Paulo, que muitos afirmam ter apoiado o regime militar em seu início, chegou a ter uma edição confiscada, por causa de um protesto ao AI-5, e o Jornal do Brasil teve sua sede ocupada por oficiais do Exército.

Jornais e revistas com tendências esquerdistas tiveram suas sedes e oficinas invadidas e destruídas, como Politika, Folha da Semana, O Semanário, Última Hora e O Correio da Manhã. Este último, inclusive, acabou fechando, depois da prisão de sua proprietária. A briga entre os militares e a imprensa se tornou tão séria que, no dia 22 de julho de 1968, a Associação Brasileira de Imprensa sofreu um atentado a bomba.

A situação começou a aliviar depois da posse do general Médici, em 1969, mas não para todo mundo, e nem tanto assim. Embora o presidente tenha reduzido a censura já no dia seguinte à sua posse, O Estado de São Paulo, o Jornal da Tarde, o Pasquim, Opinião, Veja e O São Paulo (da Arquidiocese Paulista) continuaram sob severa vigilância. Fora isso, os famosos telefonemas e “bilhetinhos” com ordens, disfarçados de pedidos, continuaram chegando a muitas redações.

Música

Até pela visibilidade dos personagens, a questão da censura na música é uma das mais comentadas até hoje. Artistas do porte de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque chegaram a deixar o Brasil, depois de perseguições e prisões. Antes de partir para a Itália, em 1969, Chico criou até um pseudônimo. Julinho da Adelaide, que deu entrevista e tinha carteira de identidade, foi o nome que ele encontrou para driblar os censores, que àquela altura suspeitavam de qualquer música que tivesse seu nome nos créditos.

Aquela que se tornou praticamente um hino da resistência à ditadura também foi, obviamente, proibida. Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores, de Geraldo Vandré, ficou em segundo lugar no III Festival Internacional de Cultura, em 1968, e transformou seu autor em alvo dos militares. Por precaução, Vandré foi para o Chile e depois para a Europa. Ainda assim, no início dos anos 90 declarou que nunca tinha escrito qualquer canção de protesto e que sua relação com os militares não era ruim.

Mas nem só os temas políticos despertavam a irritação dos censores. Considerados ignorantes e, a certa altura, beirando a paranóia, eles implicavam também com qualquer letra que atentasse contra “a moral e os bons costumes”. Nessa situação, por exemplo, o cantor Odair José teve pelo menos três músicas barradas: O Motel, A Primeira Noite e Pare de Tomar a Pílula. Suas músicas “inconvenientes” e “inadequadas”, conforme os documentos da época, seriam tão perigosas quanto os versos mais políticos de Caetano e Gil, que chegaram a ser presos e também partiram para o exílio na Europa.

Filmes

A censura atingiu em cheio a produção do chamado Cinema Novo, uma fase especialmente criativa na produção cinematográfica brasileira. A primeira vítima foi o diretor Glauber Rocha, que viu seu filme Terra em Transe, de 1967, ser premiado em diversos festivais do exterior (inclusive em Cannes), mas proibido no Brasil. Provocativo, o longa contava a história da fictícia República de Eldorado, onde um jornalista e poeta tentava combater a miséria e a injustiça do país, dominado por corruptos tecnocratas. Marcado, o cineasta passou a ser sistematicamente perseguido.

Entre as proibições mais famosas está também a de O Bandido da Luz Vermelha, o primeiro longa de Rogério Sganzerla, considerado o marco inicial do cinema marginal brasileiro. Cenas com personagens nus, algumas insinuando sexo e falas com palavrões tiveram cortes impostos. 

Mas esses são apenas os exemplos mais conhecidos. O site Memória da Censura no Cinema Brasileiro, que reúne mais de 14 mil documentos, entre processos de censura, relatórios e material de imprensa, registra pelo menos 444 filmes brasileiros que sofreram algum tipo de interferência entre as décadas de 60 e 80.

Teatro

Um dos setores mais combativos durante o regime militar foi o dos atores e diretores teatrais. Os problemas começaram em 1965, com a proibição de vários textos e alterações em outros, como Liberdade, Liberdade, que recebeu 25 cortes.

Mas a situação se tornou insustentável em 1968, considerado por muitos o ano mais duro da repressão militar, em todos os segmentos. Grupos teatrais entram em confrontos com a polícia e, em 11 de fevereiro, teatros cariocas e paulistas iniciaram uma greve de três dias, em protesto contra a censura. Os mais importantes atores da época, como Cacilda Becker, Ruth Escobar e Walmor Chagas, entre outros, participam de vigílias nas escadarias dos municipais do Rio e de São Paulo.

Ainda em 1968, no dia 11 de julho, um teatro que apresentava o espetáculo Roda Viva, de Chico Buarque, sofre depredação. E, em 8 de outubro, a atriz Norma Bengel é sequestrada em São Paulo, espancada e libertada horas depois, no Rio de Janeiro.

Literatura

Além de autores estrangeiros, a censura também vigiou escritores brasileiros, incluindo aqueles que, assim como os músicos, atentavam contra os “padrões morais”, e não só os que representavam alguma ameaça política.

Por essa classificação, gente como Florestan Fernandes, Millôr Fernandes, Moacyr Scliar, Celso Furtado e H. Arendt, entre muitos outros, passou a ser mal vista pelo poder. Jorge Amado, então, conseguiu a façanha de ter obras censuradas em livro, teatro, TV e cinema.

Um fato curioso é que, em pelo menos um caso, o tiro saiu pela culatra. Em 1975, ao classificar o livro de contos Feliz Ano Novo como desrespeitoso à moral, a censura acabou ajudando Rubem Fonseca a conquistar a celebridade. Sem grande fama antes disso, ele acabou se transformando em um dos principais autores de ficção do Brasil.

TV

Como era de se esperar, o veículo com maior alcance de público foi controlado com extremo rigor durante o período da ditadura. Além de classificar todo e qualquer programa por faixa etária, filmes eram mutilados a ponto de prejudicar sua compreensão. Bastava qualquer menção – mesmo que não explicita – a sexo, política ou desrespeito à igreja.

O caso que mais chamou a atenção, no entanto, foi o da novela Roque Santeiro, de Dias Gomes. Originalmente batizada de A Saga de Roque Santeiro e a Incrível História da Viúva que Foi Sem Nunca Ter Sido, era inspirada na peça O Berço do Herói, do mesmo autor, proibida em 1965.

Com dez capítulos já editados e quase 30 gravados, a censura avisou que ela não poderia ser exibida na noite em que deveria estrear, na Rede Globo. A justificativa oficial? “A novela contém ofensa à moral, à ordem pública e aos bons costumes, bem como achincalhe à Igreja”. Mas a real seria outra: um grampo em uma conversa telefônica, na qual Dias Gomes contava ao amigo Nelson Werneck Sodré que a novela era uma forma de enganar os censores “muito burros” e levar o texto da peça ao público.

A solução encontrada às pressas pela Globo foi exibir uma versão compacta de Selva de Pedra, enquanto sua autora, Janete Clair, escrevia Pecado Capital. Apenas dez anos depois, já no governo do civil José Sarney, Roque Santeiro foi liberado. Uma nova versão foi gravada e exibida entre junho de 1985 e fevereiro de 1986, se transformando em uma das novelas de maior sucesso da história da TV brasileira.

Igreja

Embora a censura usasse supostos desrespeitos à religião para justificar proibições e cortes, a própria igreja católica teve seus problemas durante o regime militar. Inicialmente favorável ao golpe, a instituição retirou o apoio assim que começaram os atos de violência e repressão, que atingiram também padres e bispos considerados “comunistas”.

Um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Hélder Câmara teve pregações e entrevistas constantemente censuradas. No início, suas falas eram apenas cortadas, mas com o tempo passaram a ser proibidas. Em 9 de novembro de 1970, veio a determinação: “De ordem do Sr. Ministro da Justiça, ficam proibidas quaisquer manifestações, imprensa falada, escrita e televisada, contra ou a favor de Dom Hélder Câmara. Tal proibição é extensiva nos (sic) horários de televisão reservados à propaganda política.”

Sem espaço na imprensa, Dom Hélder não se calou, publicando no Boletim Arquidiocesano denúncias de prisões e torturas. Apenas no dia 24 de julho de 1977 ele voltou às páginas dos grandes jornais, em uma extensa entrevista no Jornal do Brasil, apesar de não haver nenhum pronunciamento oficial sobre o fim da proibição de suas manifestações.

O arcebispo foi indicado quatro anos seguidos ao Prêmio Nobel da Paz, mas não ganhou. Segundo membros da igreja, por influência dos militares, que acionaram seus contatos internacionais para impedir que ele fosse agraciado.

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Censura na ditadura causou estragos em diversos setores