Guilherme Arantes


Créditos: Divulgação/Pedro Matallo

Paulistano do Bixiga, Guilherme Arantes, 59 anos, foi um garoto prodígio. Tocou cavaquinho e bandolim aos 4 anos e piano aos 6. Foi tecladista de Jorge Mautner, montou o grupo de rock progressivo Moto Perpétuo e aos 23 abandonou a faculdade de arquitetura para tocar nas novelas da Globo.

Vieram dezenas de clássicos: alguns deles são Meu Mundo e Nada Mais, A Cidade e a Neblina, Amanhã, Cheia de Charme, Coisas do Brasil, Cuide-se Bem, Deixa Chover, Lindo Balão Azul, Muito Diferente, Planeta Água, Um Dia, um Adeus, Êxtase, Coração Paulista, Aprendendo a Jogar, Perdidos na Selva (Gang 90), Lance Legal, O Melhor vai Começar.

Mas o tempo passou e Guilherme, que sempre foi conhecido pela sua sinceridade e personalidade, cansado de ouvir não e sem intenção de se submeter às novas regras do mercado, em que os produtores que dão as cartas, nos anos 2000, ele se mudou para a Bahia e montou o seu próprio estúdio e selo musical, o Coaxo do Sapo, em Barra do Jacuípe. 

“‘CD novo de inéditas’ se transformou em bicho-papão de um mercado covarde, que só quer sucesso pronto. As pessoas têm verdadeira alergia, têm urticárias quando se fala em ‘tentar sucesso com música nova’, afima o músico em texto enviado para a imprensa na manhã desta sexta-feira (12) para divulgar seu novo álbum Condição Humana (Sobre o Tempo).

No texto, o músico fala também dos equipamentos que usava na virada dos anos 70 para os 80, como o CP70 Yamaha com flanger Mutron e das baterias eletrônicas TR 707 e LinnDrum que transformaram seu som em eletropop. 

“Nunca houve um tempo tão ridículo em maneirismos e hábitos, quanto este atual. Essa é a minha sensação e das pessoas da minha geração. Não temos nada mais a perder, estamos na virada dos 60, vovôs, e podemos ser ranzinzas à vontade – aliás, é o melhor que podemos fazer. Um dia, lá na frente, as pessoas vão rir das galeras postando seus vazios nas redes no celular, assim como hoje parecem ridículas nossas roupas e cabelos dos anos 80…”, diz o músico, conhecido pela sua sinceridade e rebeldia, que mantém desde o começo da carreira com declarações sem papas na língua.

Sobre o novo trabalho ele desabafa: “Eu precisava vomitar um disco que viesse sanguinolento, com guts, com “culhões” de quem tem o que dizer e está pouco se lixando se o mundo vai aceitar ou não…”. Leia o texto na íntegra:

Condição Humana (Sobre o Tempo)  

Parte 1 – Contexto histórico

Final da década de 70. A gente vivia em estúdios, procurando o som pra entrar no mágico mercado dos discos… Os estúdios eram templos sagrados, com suas lendárias máquinas de fita de duas polegadas. Tudo era caríssimo, nas mãos de barões milionários. O vinil, literalmente incopiável, já que os cassetes proporcionavam uma qualidade rudimentar… Bons tempos…

O som que se fazia era “eletroacústico”, e embora a música eletrônica fosse uma coqueluche mundial, não existiam ainda os computadores pessoais, nem a conexão “midi” pra ligar sintetizadores entre si – muito menos o sequenciamento que dominaria a produção musical… Nesses primórdios, o gênio brilhante de Giorgio Moroder me fascinava, mas eu não tinha os arsenais de “Gate/CV” e sincronização de arpegiadores que eram exclusividades do mestre italiano…

Bateria eletrônica só chegaria por aqui em meados dos 80, de sorte que todo o pop, todo a disco music, a black music que estavam no auge, o funk que ainda engatinhava, tudo era executado à mão mesmo, por músicos. Batidas mais dançantes exigiam dos bateristas precisão de máquina, e todo o instrumental tradicional era valvulado, os itens “modernos” eram transistorizados, pianos, clavinetes, tudo era com captação por solenóides magnéticos…

Esse cenário, tendo ao fundo o esplendor das gravadoras no ápice dos vinis, permitia que houvesse uma classe musical sofisticada – oriunda da cena baileira dos anos 60, essa turma fez musica genial e duradoura. Dali emergiram para o sucesso Novos Baianos, Rita (Lee), Raul (Seixas), Tim Maia, Banda Black Rio, Alceu Valença, Djavan, A Cor do Som, Belchior, Fagner, Milton Nascimento e o Clube da Esquina, Marina Lima, Lulu Santos, toda uma geração “intermediária”, pós-festivais e pré-Rock in Rio, uma geração que permaneceu…

Nos anos 80, com a ascensão do computador e dos programas de sequenciamento, a música sofreria uma transformação radical: já seria possível programar um disco inteiro eletronicamente, em casa, em “demos” e pré-produções minuciosas, e a brilhante geração de músicos de estúdio sofreria um lamentável declínio… Com as pré-produções, a manipulação das direções artísticas das gravadoras passaria a ser total, e a ida para o estúdio ficava para uma mera etapa de finalização… O registro era analógico ainda, mas o método de produzir era digital. Mais tarde o mundo digital a tudo engoliu, desnecessário descrever daí pra frente…

O fato é que na virada dos 70 para os 80 nós estávamos na flor da idade, e eu tinha um som característico, de CP70 Yamaha com Flanger Mutron, e muitas músicas pipocaram daí, completamente armadas por mim – sozinho, sem ninguém meter o bico  – Êxtase, Coração Paulista, Aprendendo a Jogar, Deixa Chover, Planeta Água, Perdidos na Selva (Gang 90) e, mais tarde, já no início dos 80, Lance Legal, O Melhor Vai Começar, Lindo Balão Azul

Com a aquisição de baterias eletrônicas (TR 707, LinnDrum) fui me embrenhando naquele eletropop, estimulado pelas gravadoras, e pelos produtores que passavam a reinar… Aliás, a figura do produtor, nos anos 80, passaria a dominar a cena. Sem muitos músicos pra interferir, os sequenciadores eram o supra-sumo da prepotência e dos egos de produtores… Ainda bem que eu consegui sobreviver a esse período quase incólume… Digo “quase” porque hoje eu penso que meu som se desfigurou. Não fosse o meu piano, sempre verdadeiro, eu teria sucumbido ao pop de época. Mas a verdade do músico não está apenas na voz, mas especialmente nas mãos… E hoje vejo que tenho mãos poderosas pra alimentar e manter milagres…

Parte 2 – Contexto atual

Cortando para os anos 2000, vim pra Bahia me instalar em Barra do Jacuípe, pra montar uma infra que as gravadoras já não oferecem mais… Tive que me virar, seja porque fiquei mais velho, sem o “glamour” televisivo, sem prioridade alguma na indústria, ou seja, porque a própria indústria vem tentando sobreviver num insondável xeque-mate com o digital, a realidade de hoje é toda diferente, e os artistas não têm mais a moleza da velha indústria milionária, mas em compensação têm uma facilidade infinitamente maior para se autoproduzirem…

Então aos poucos fui realizando um estúdio e todos os meus sonhos de jovem, que na época eu não tinha condições de ter, seja por força da truculência da vida aos 30 anos, ou seja, porque tudo era caríssimo na época. E assim foi criado o Coaxo do Sapo, materialização de sonho e de engenhosidades diversas…

Faltava só um disco, que fosse buscar lá nas raízes do meu som, na virada dos 70 para os 80, a minha essência, os meus segredos de sucesso… Há sete anos sem lançar nada novo, no final de 2012 entrei literalmente numa crise de identidade. Embora eu tivesse várias canções alinhavadas, o assunto “CD novo de inéditas” se transformou em bicho-papão de um mercado covarde, que só quer sucesso pronto. As pessoas têm verdadeira alergia, têm urticárias quando se fala em “tentar sucesso com música nova”.

Azar de quem tenha bastante sucesso antigo – pois não dá pra comparar nenhuma novidade com produtos antigos, “vintages” enobrecidos pelo tempo.  Até os fãs discriminam as novidades e privilegiam as “antiguidades para colecionadores”…
Enfim, a luta é essa. Não fazemos música só pra ganhar dinheiro.

Faço música como o castor faz seus diques, como o sabiá faz seus ninhos, porque nasceram pra essas atividades. Por mais que existam diques e ninhos pré-fabricados no supermercado, não adianta, a minha geração foi e é incrível, estamos todos aí, vivos e cheios de sonhos…

Faço músicas, componho e escrevo porque nasci pra fazer isso e porque essa é a minha função no Universo, independente da serventia e do utilitarismo de uma época.
 
Parte 3 – Condição Humana (Sobre o Tempo)

Resolvi mostrar nesse disco, logo de cara, que existe uma “pegada” no piano (já que o segredo está mesmo nas mãos), “pegada” essa que ninguém jamais vai me copiar. Cada um tem a sua “pegada” no instrumento, eu tenho a minha, e as pessoas gostam de mim por isso, acima de qualquer outra coisa. Isso é claro.
Então este é um disco de “pegada”. O som do Guilherme, com a sonoridade única da virada dos 70 para os 80, está de volta.

Desta vez foi mandatório não fazer nenhuma concessão e não ficar ouvindo abobrinha de nenhum produtor que tenha caído “de paraquedas” no meu trabalho…
Me juntei com a minha banda – Luiz Sergio Carlini (guitarras e violões), Willy Verdaguer (baixo), Alexandre Blanc (guitarras e violões), Gabriel “Frejat” Martini (baterias e percussões) e com minha equipe, pra fazer um disco que fosse seminal,  no mínimo.

Um disco que passasse a minha visão de estranhamento num mundo que até às vezes parece perfeito… O meu incômodo numa sociedade que até às vezes parece evoluir para a felicidade geral… O meu desconforto num “sistema” que tenta passar a imagem de que a tudo engole, a todas as diferenças se adapta, a todas as minorias contempla, um “sistema” a cada dia mais justo, porém amorfo e chocho, sem arestas nem contestações.

Um “sistema” que transforma todas as inquietações em mercadoria. Uma absoluta “ordem social” politicamente correta, com todos os perigos que essas “perfeições de ordem social” nos remetem.  Eu precisava vomitar um disco que viesse sanguinolento, com guts, com “culhões” de quem tem o que dizer e está pouco se lixando se o mundo vai aceitar ou não…

Os festivais de música são um desfile bem-comportado de artistas competentes em sua função utilitária de servir à massa, que é uma imensa e generalizada “balada”. Tudo é uma confortável “balada”.

Nunca houve um tempo tão ridículo em maneirismos e hábitos, quanto este atual. Essa é a minha sensação e das pessoas da minha geração. Não temos nada mais a perder, estamos na virada dos 60, vovôs, e podemos ser ranzinzas à vontade – aliás, é o melhor que podemos fazer. Um dia, lá na frente, as pessoas vão rir das galeras postando seus vazios nas redes no celular, assim como hoje parecem ridículas nossas roupas e cabelos dos anos 80…

Pra minha geração, que viu e viveu os anos 60, Woodstock, Luther King, Godard e a convulsão no cinema, barricadas nas ruas de Paris, o sangue nos porões de uma latino-américa lancinante,  o mundo em 2013, que não acabou em 2012, é de uma acomodação geral, hilariantemente inaceitável. O “sistema” já equacionou e sabe lidar com as contraposições e propostas alternativas, e a tudo rapidamente amolda em “boxes” de mercado…

As letras deste disco, deste ano, não podiam excluir essa sensação de náusea. Náusea com a corrupção mundial, os ratos dos governos invariavelmente por trás de toda a perversidade e sacanagem do mundo. Náusea com o mercadejar da fé, nesse tempo de tantos apelos ao plano “sobrenatural”, tão ridículo e podre quanto os poderes terrenos. Náusea porque o “politicamente correto” inclui um “respeito” à mentira e à empulhação. Indignação porque todo dia o noticiário traz novas desilusões, o dinheiro correndo solto na impunidade geral.

Náusea porque o mundo caminha claramente para o colapso, porque as corporações não estão nem aí e vão até o fim, até a curva populacional explodir, já que nem curva é mais, e sim um elevador vertical rumo a um formigueiro boçal onde a ignorância e a grosseria são parte da “atitude”. O importante é ter “atitude”. O importante não é o que somos, mas o que está na rede. O que não está na Rede, não está no mundo… Claro que eu fiz algumas canções de amor, já que nem só de indignação e inconformidade se transforma o mundo…

Tem até o resgate de uma “canção de gesta”, que fiz aos 16 anos de idade.
Todas as canções falam do tempo. Daí o subtítulo “Sobre o Tempo”. É esse tempo que passou, e que ainda nos resta, que interessa. É a urgência do grito e o olhar panorâmico sobre o acervo do que vivi.

Uma conclusão eu tirei da minha crise: Jovem é quem corre para a morte. Velho é quem foge dela. Se estou correndo para a morte, ansiando pelo tempo que me resta correr veloz, então ainda sou jovem. Se estou tentando evitar a morte, se procuro qualquer atalho ou ponte para atravessar o destino inevitável, então estou velho. Não à toa, com este disco eu me sinto de novo com 20 anos.

Ouça Cheia de Charme, de Guilherme Arantes



Veja Guilherme Arantes cantando Deixa Chover no Chacrinha em 79  



Veja Lindo Balão Azul, com Guilherme Arantes e banda 


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'CD novo de inéditas é bicho-papão de mercado covarde', diz Guilherme Arantes

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