“Não são temas que costumam ser tratados em um álbum pop. Nem em um de rock, pra falar a verdade”, comentou Sérgio Britto, do Titãs, em entrevista exclusiva ao Virgula Música, sobre as questões que o último trabalho de estúdio da sua banda, Nheengatu, aborda.

Pedofilia, machismo, preconceito social e morte formam o quebra-cabeça do álbum lançado este mês, aclamado de forma unânime pela crítica. “Por sorte, a gente é do tipo de banda que as pessoas esperam qualquer coisa”, se diverte Britto, negando que tenha havido qualquer receio por parte dos titânicos por trazer assuntos controversos nas letras do álbum. “Na verdade, o nosso único receio era não conseguir tratar desses temas de maneira adequada. Acabar forçando a barra, dando lição de moral ou emitindo juízo de valor”, ele explica.

Duas faixas que se ressaltam à primeira vista em Nheengatu são Flores Pra Ela e Pedofilia. Pedofilia traz o discurso conciliador e disfarçado do agressor (“Ele disse: ‘eu tenho um brinquedo’ / Vem aqui, vou mostrar pra você”), enquanto a primeira mostra um retrato cru da violência contra a mulher, ilustrando um parceiro abusivo (“Ele é o dono, ela é o cão / E nem tem como ela dizer não”). “A gente conseguiu soluções interessantes para temas espinhosos”, atesta Britto. “Nós mostramos o fato, que já é suficientemente forte”.

Fardado retoma a temática da clássica Polícia, mas com abordagem diferente: enquanto a mais antiga se referia à instituição, Fardado traz o policial como sujeito. “Já na primeira fase, temos os versos ‘fardado, você também é explorado’. Você se coloca como igual”, ele explica. “Nós chamamos a atenção para o policial como um servidor público, como alguém que presta um serviço para a sociedade. Acho que não estamos acostumados a ver a polícia dessa maneira, e eles também não se enxergam assim, lamentavelmente”.

A volta da sonoridade rápida e seca, marca registrada da banda, também contribuiu para que Nheengatu já tenha ganhado o status de ícone. Sérgio Britto acredita que a turnê feita em 2012 em comemoração ao relançamento do álbum Cabeça Dinossauro, de 1986, tenha tido influência na forma da banda de produzir o último trabalho: “Essas músicas do Cabeça Dinossauro tem uma estética muito nossa. Ali a gente estabeleceu uma sonoridade titânica. A economia nos versos, os riffs, as músicas curtas e o discurso direto são coisas que fazem parte do nosso vocabulário”, ele diz. “Ter tocado todas elas nos fez lembrar que essa é uma boa maneira, e talvez a mais eficiente, de fazermos música”.

Nheengatu significa “língua geral”, e se refere a um idioma criado pelos padres jesuítas para possibilitar o entendimento entre os portugueses e as tribos índigenas — e que acabou sendo proibida pelo Marquês de Pombal no século XVIII. Já a capa do álbum é um projeto baseado na obra “Torre de Babel”, de Pieter Brueghel. Ao unir a língua do entendimento e o “monumento ao desentendimento”, nas palavras de Britto, o Titãs cria um jogo. “O que está por trás disso é a gente tentando promover o entendimento”, ele pontua.

Sérgio Britto conta que a produção de Nheengatu não foi algo planejado, e sim um trabalho desenvolvido ao longo de quase quatro anos. Eles entrarem em estúdio sem contrato com nenhuma gravadora. “A gente queria fazer um disco. Era uma necessidade artística”, ele lembra. “Então fomos trabalhando, pensando que quando chegasse a hora [de finalizar o álbum] veríamos o que fazer”. A proposta da Som Livre veio durante o processo de produção do álbum. “Antes de começar qualquer conversa, assinar, nós avisamos que estávamos fazendo um disco rápido, pesado, com assuntos polêmicos. Eles responderam que era exatamente isso que queriam da gente e se entusiasmaram com o trabalho”, ele explica o porquê de terem assinado com a gravadora.

O disco foi produzido por Rafael Ramos, que já trabalhou com a Pitty, o Ultraje a Rigor, O Capital Inicial e o Raimundos. “Ele é um cara que ama o rock, e que sempre foi um fã nosso, ele conhece o nosso trabalho. Achamos que ele era a pessoa certa para tirar o som que precisávamos no estúdio, para que o disco em si funcionasse, e não só as músicas ao vivo”, Britto conta, e acrescenta que a parceria iniciada em Nheengatu “ainda pode gerar outros frutos”.

Ainda que Nheengatu esteja sendo louvado como a volta à “boa forma” da banda, é importante ressaltar que a crítica social nunca saiu totalmente da pauta dos Titãs. “Nunca saiu [a crítica, de vista]. Mas as pessoas enxergam o que querem ver”, lamenta Sérgio Britto. “Sacos Plásticos [trabalho de estúdio anterior da banda, lançado em 2009] foi quase que unanimemente execrado como um disco muito fraco, e eu acho que há coisas fortes ali”, ele comenta. “Acho que a crítica muitas vezes é superficial. As pessoas não ouvem o disco com atenção, com carinho. Ele ouve por cima, vê que foi o Rick Bonadio que produziu, que tem uma canção de amor na rádio, e é uma porcaria. Muita gente fez isso com Sacos Plásticos, e continua fazendo, mas para falar bem do Nheengatu”. Ele continua: “Acho que se pode ter uma boa balada de amor, independe do resto. O assunto em si não determina se a música é boa ou não. A crítica é assim, vai meio que por ondas. Agora a maré virou e todo mundo fala muito bem desse disco. Muito bem mesmo, como poucas vezes falaram na nossa carreira. E eu não vou reclamar, né”, ele ri.


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"Conseguimos soluções interessantes para temas espinhosos", diz Sérgio Britto sobre novo disco dos Titãs