Ruspô ao vivo no Festival Fábrica.Lab Infinitas, em Vitória (ES), 2014

Felipe Amarelo/Divulgação Ruspô ao vivo no Festival Fábrica.Lab Infinitas, em Vitória (ES), 2014

Ruy Sposati está prestes a lançar o seu segundo disco como Ruspô. Depois de uma estreia bastante aclamada pela crítica brasileira e até internacional, com Esses Patifes, o músico e jornalista retorna com Dourados, um trabalho descrito como “mais cinza” pelo próprio autor, e que leva no título o nome da cidade do Mato Grosso do Sul por onde viveu nos últimos anos.

No entanto, Dourados segue a linha do disco anterior no quesito letras espertas que misturam amor e política (“Edileuza, vamos dar um rolê bolechevique/contra a alienação”, canta em “Edileuza”), batidas eletrônicas modernas que lembram algo de bandas indies, como M83 e Chairlift (“Jacareacanga” e “Coisas Estranhas Contra Eles”) e sambinhas divertidos e otimistas (“Moça Chorando”).

No momento da entrevista, Ruy estava arrumando as malas para se mudar. Vai deixar Dourados e voltar para Santos, no litoral de São Paulo. “Acabou meu trampo aqui, o projeto que financiava meu trabalho se esgotou. E aí sei lá… resolvi ir embora. Não sei se fico em Santos definitivamente, mas fato é que estou saindo daqui”.

Mato Grosso do Sul

Digo que estive por lá recentemente (em Campo Grande) para cobrir o show de Maiara e Maraisa e o músico revela que não para de ouvir o hit da dupla, “Medo Bobo”. “Eu tô viciado na música, não só eu, mas absolutamente todo mundo nesse estado. Hoje mesmo passou um pedreiro aqui tocando ela no celular”.

Pergunto se o sertanejo tem alguma influência no novo trabalho. “(risos) Cara, eu comecei a fazer uma música chamada “50 tons de soja”, que pegava alguma coisa de uma música da Paula Fernandes. Era a história de um fazendeiro que dirigia seu carro pelas estradas e, enquanto ia passando pelas diversas tonalidades de verde das plantações de qualquer caminho por aqui, ele ia pensando na sua paixão, possivelmente um indígena. Era uma besteira e não foi pra frente. Talvez um dia eu volte”.

“Eu sempre começo a fazer umas músicas meio de escárnio, tipo John Waters, mas sempre fico achando que é uma modalidade meio contraproducente hoje em dia. E nesse caso acho que o sertanejo viria um pouco nessa perspectiva. E eu preciso ouvir mais pra assimilar melhor, acho que é uma parada que funcionaria, sob um certo filtro. Normalmente quando eu saio do lugar, os ritmos locais batem mais, voltam depois, sei lá”.

Vida na estrada

Os próprios títulos de suas músicas, como “Altamira”, “Santos”, “Belém, Belém”, “Brasília é Luísa” e “Jacareacanga”, já refletem uma vida vivida na estrada. Mas Dourados teria um peso maior dessa vez, uma vez que dá título ao disco? “Acho que tem… do ponto de vista da minha experiência, Dourados – ou melhor, o “estado de espírito” Dourados – catalisa bastante do que eu penso e sinto sobre os lugares. Eu gosto de viver, coisa e tal, mas o mundo tá uma merda também, pra muita gente. Em Dourados, se você tá fora das hegemonias, isso é muito presente. Então “Dourados”, ou o state of mind, surge como uma categoria pra sentir isso aí. E também pra conformar o disco. Embora seja isso que você falou, das músicas terem sido feitas em vários cantos, eu finalizei todas em Dourados, morando aqui, choramingando aqui. Tava e tô nesse estado das coisas.”

Jornalismo

“Cara, eu acho que a música e o jornalismo, não só pelo ofício propriamente dito, mas pelos rolês que surgem em função desse jornalismo com as populações tradicionais, os lugares onde eu moro… Tá tudo umbilicado mesmo. Eu não consigo separar. Eu fico tentando às vezes… sei lá, fazer alguma coisa mais Luiz Tatit, versos e histórias inteligentes, mais Jorge Bem, letras nada a ver (risos), mas sempre volta pra essas “impressões” do que eu ouço, do que as pessoas falam. A maioria dos versos são coisas que as pessoas dizem, que eu ouvi”.

O músico Ruy Sposati e o seu notebook

Divulgação O músico Ruy Sposati e o seu notebook

Dourados State of Mind

A oitava música do disco leva o nome de “Dourados State of Mind” e é uma versão do hit de Jay-Z e Alicia Keys, “New York State of Mind”. Com uma vibe um pouco mais melancólica do que a original do rapper americano, “Dourados” conta a história de uma cidade onde “ruas são todas feitas de flores e um pouco de sangue e índio não entra no shopping, que branco não gosta”.

“É um recorte de alguma coisa, né? De algo que existe, que acontece. Não se trata da cidade, porque os episódios colados ali não aconteceram necessariamente aqui. Mas tem uma cultura na região que é muito anti-indígena, e a música passa por esses antagonismos. eu resolvi fazer do ponto de vista de alguém muito cruel, de alguém que resolve dizer o que pensa. E eu já vi muita gente aqui que pensa assim, que age assim”, diz Ruy.

“Por exemplo, quando diz que o fulano guarda “a Winchester na fazenda”, isso é fato: muita gente tem. E um fazendeiro em especial, em 2013, em Caarapó, assassinou um indígena com uma espingarda dessas, que era usada pra matar índio no século 19 nos Estados Unidos. Então, quero dizer que não é um troço abstrato, mas claro que não resume um lugar, os hábitos, a cultura. Eu gosto daqui. Tanto é que eu moro, insisto em morar, em tentar morar. Mas ser de fora aqui é foda. Não é igual ser de fora em São Paulo, ou em Belém”.

A capa de Dourados, do Ruspô (2016)

Reprodução A capa de Dourados, do Ruspô (2016)

Capa

“A capa é um crop de uma foto do Lunaé Parracho. A foto inteira é bonita, mas praticamente idêntica à capa do Wind & Wuthering do Genesis (risos), aí não deu pra usar. Mas ela ficou daquele jeito porque queria algo bem cinza, monótono, quase abstrato, um pedacinho de vista mais difícil de explicar a priori, e por isso potencialmente mais profundo, mais enraizado. eu mesmo penso em tantas outras coisas olhando aquilo lá, coisas de quando eu era criança… a outra capa era amarela, desenho bonito e enigmático, num design bem tosco e infantilizado (referindo-se à capa do disco anterior). O disco novo, definitivamente, não podia ter esse clima na capa, porque na minha cabeça ele era todo muito cinza e monótono, como a capa”, explica Ruy.

Briga com a polícia federal em Sidrolândia

Em meados de 2013, Ruy esteve no meio de um episódio no mínimo lamentável. Seu computador foi apreendido durante a cobertura que fazia de uma ocupação indígena. “Alguns dias depois, naquele mesmo lugar, em Sidrolândia (MS), a PF matou o índio terena Oziel Gabriel. Umas duas semanas atrás, ou seja, mais de três anos depois, o MPF finalmente conseguiu refazer a investigação – na época, a polícia tinha dito que não era possível determinar quem tinha matado o indígena, coisa e tal. E agora a procuradoria da república vem dizer que não é bem isso não, que a bala era sim da polícia. Quer dizer, se depender da polícia, aqui… O que eu passei é parte dessa arbitrariedade maluca de classe aqui, porque quem chamou a polícia naquele episodio foi um fazendeiro muito rico, ex-deputado, ex-secretário da fazenda. e a polícia operou, basicamente, em torno da narrativa desta pessoa (cujas propriedades, juntas, são maiores do que as reservas guarani e kaiowa de Dourados e Caarapó, onde vivem uns 20 mil indígenas). Foi assim comigo, porque, como é evidente no vídeo, o delegado veio com sangue no olho pra me pegar, pegar a gente do CIMI (conselho indigenista missionário) e tal. Depois, fizeram aquela reintegração de posse desastrosa, onde morreu  o Oziel”.

O vídeo da apreensão

No computador que Ruy perdeu estavam todas as músicas do Ruspô, além de arquivo de fotos, anotações, etc. “Isso me fez querer ir embora. Dali a pouco eu voltei pro Pará, e decidi ir fazer um mestrado em Minas. mas a parada se esticou, porque a apreensão virou um inquérito da PF, que depois virou uma CPI surreal na assembléia legislativa. Esse inquérito foi concluído e arquivado pela justiça por falta de provas. A CPI acabou e foi encaminhada pro ministério publico estadual. Ainda não se sabe se vai ser arquivada, ou se vão acatar a denúncia. Denúncia de que a gente é guerrilheiro,de que meu trabalho de jornalista é uma fachada, porque na verdade eu fabrico bombas e dou treinamento de guerrilha pros indígenas (risos). É surreal. Mas então, aí finalmente em maio desse ano o computador foi devolvido. mas veio meio quebrado, não tive dinheiro pra mandar pro conserto. Eu consegui ligar ele uma vez só, mas tá com algum problema estranho. Não consegui recuperar nada daquele computador ainda, mas o HD me parece que tá funcionando bem, vou tirar pra tentar espelhá-lo num HD externo e ver o que dá pra salvar”.

1999

Em uma das músicas de Dourados, “1999”, Ruy relata o assassinato de um colega de classe, ainda na época do ensino fundamental. Thiago Ferreira, colega descrito na canção, tinha 16 anos e foi espancado junto com outros dois amigos. “Eu tava na oitava série, isso era lá em Santos, sabe? Eu tinha acabado de mudar pra cidade, era uma época foda, eu tomava um pau daquela galera pique Chorão, meio maloqueira, meio playboy,(risos). Eu era bem moleque ainda. Tinha um colega, que era mais velho, repetente (mas tido pelas professoras como um cara inteligente, coisa e tal), que era um dos poucos que não encrencava comigo, era mais na dele. Eu sofria muito com rinite alérgica em Santos. Lembro de ele ter uma piada que ele repetia comigo, quando ele me via chegando na aula fungando, coçando o nariz, ele dizia “Ruy, já deus uns tiros hoje, haha!”. Enfim, acho que no ano seguinte, isto é, alguns meses depois do fim do oitavo ano, no carnaval, lá na Ilha Porchat (lugar famoso em São Vicente, cidade vizinha à Santos), ele tava com esses dois brothers, estavam na beira da água e os policiais chegaram quebrando tudo, acho que viram a merda que tinham feito, e resolveram dar cabo dos três”.

“Essa história vinha muito na minha cabeça, especialmente nos últimos três anos, sei lá porque. Aí um dia saiu a música. Liguei pra minha mãe, porque lembro que na época ela ficou muito abalada com a história, vendo os detalhes que ela lembrava. Aí fui ler as decisões judiciais, pra ver o que tinha sido consolidado sobre o episódio, e também umas reportagens da época. E ao contrário do que boa parte das vezes acontece em casos de violência policial contra gente pobre e não-branca, eu acho que esse episódio tomou alguma proporção porque, ao contrário do que imagino que esperavam os policiais, o Thiago era filho de uma defensora publica, acho, e ela teve condições de amplificar as denúncias contra as execuções”.

Coreia do Sul

Uma música de Dourados foi gravada enquanto o músico estava na Coreia do Sul. “Trampar com os índios é massa. Além de ser foda o convívio com eles, sempre tem umas agendas malucas. Eu nunca tinha ido pra fora, e aí a organização com quem eu trabalhava foi convidada, junto com um indígena munduruku, a ir dar umas palestras e fazer reuniões com movimentos sociais na Coréia do Sul. Foi bem foda. Nunca tinha visto um lugar que, apesar de estruturalmente ter todas as contradições que o capitalismo estabelece nas nossas vidas, não existe arma de fogo, não tem ninguém sem casa, sem comida”.

Shows

Apresentações ao vivo são raras na carreira do Ruspô, afinal não passar muito tempo no mesmo lugar traz a dificuldade de construir amizades sólidas e, claro, uma banda. “Dessa vez Jesus tá metendo o dedo e tá dando uma segunda chance pro Ruspô, colocando todos nós na mesma cidade. Alexis (Gotsis) e Marina (Ribeiro), núcleo duro da banda ao vivo também, se mudaram pra São Paulo, e eu tô indo pra lá… Então, com certeza, nosso plano agora é tocar de verdade, arrumar trompetista, baixista”.

“Algum último recado?”, pergunto.

“E eu lá sou de dar recado”, responde Ruy, que depois completa: “Pra ouvirem o disco, é de coração, é de grátis”. Está certo. Os recados de Ruspô estão todos em Dourados.

O disco estará disponível para download no site do selo Um Distante Maestro e nos principais players de streaming a partir de 15 de novembro.

Por enquanto, escute Esses Patifes no Spotify:

 

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Deve ser louco ver a cabeça do Ozzy Osbourne rodando enquanto se ouve as músicas dele. Esse disco, de 1988, é um single do álbum No Rest for the Wicked e tem as músicas Miracle Man e Crazy Babies.
Deve ser louco ver a cabeça do Ozzy Osbourne rodando enquanto se ouve as músicas dele. Esse disco, de 1988, é um single do álbum No Rest for the Wicked e tem as músicas Miracle Man e Crazy Babies.
Créditos: Reprodução

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