O diretor Joel Pizzini aproveitou os primeiros minutos de uma entrevista coletiva realizada nesta quinta-feira para explicar aos jornalistas que seu filme Olho Nu, protagonizado pelo cantor Ney Matogrosso e exibido na noite de ontem na mostra competitiva do Cine Ceará, não se trata de um documentário convencional.

“Não quis fazer um filme em blocos, desde a infância aos dias de hoje. É mais uma experiência sensorial, um autorretrato do Ney”, disse Pizzini em referência à produção que atraiu mais público até agora ao Festival Ibero-Americano de Cinema, que acontece até o próximo sábado.

Nos primeiros takes – com um jovem Ney se maquiando em frente ao espelho e o cantor já nos dias de hoje relaxando à beira de um rio – já é possível ver duas facetas desse retrato que percorrem todo o documentário: a busca da transgressão e o amor pela natureza.

As cenas seguintes comprovam a admiração que o cantor tem pelos animais – nos quais diz se inspirar não só para seus figurinos ousados, mas principalmente em sua busca pela liberdade – e mostram ainda um Ney grato ao fato de o pai ter sido militar e inicialmente não ter aceitado seu lado artístico.

“Ter nascido filho de militar me permitiu ser transgressor”, declara o cantor em determinado momento do documentário, para depois acrescentar que da profissão do pai herdou uma disciplina rígida que levou para os palcos: “Não sei improvisar. Tudo que faço no palco é ensaiado”, conta.

Um depoimento do pai (no qual diz que demorou para entender o filho “rebolando” no palco, mas que depois acabou “aderindo ao sistema”) e algumas falas da mãe são os únicos depoimentos do filme, além das intervenções do próprio Ney. Outra escolha ousada de Pizzini.

“Os depoimentos são desnecessários. Todo mundo conhece o Ney, ele não precisa de elogios. O filme não é uma homenagem, é uma experiência estética na qual queremos que o público se perca”, explicou o diretor.

A experiência proposta por Pizzini acaba levando o público, conduzido por Ney, a um passeio pela história recente do Brasil – com a construção de Brasília, a ditadura militar e o movimento das Diretas Já – e do próprio cantor, desde a passagem marcante pelo Secos & Molhados ao sucesso retumbante da carreira solo.

Ainda que preserve boa parte da vida pessoal de Ney – que sempre faz questão de ressaltar que quem sobe ao palco é um personagem -, o filme não deixa de abordar a sexualidade e até mesmo a presença da aids na vida do cantor, que relata que chegou a ir a três enterros de amigos em uma mesma semana e até manifesta espanto por também não ter morrido na mesma época.

Mas, apesar de todo esse pano de fundo, a música é a grande protagonista do documentário. Pizzini detalhou que pelo menos 80 músicas são invocadas durante toda a projeção, mas nenhuma é tocada na íntegra, segundo o diretor, para não romper a narrativa própria do filme.

O desafio então foi encaixar essas dezenas de canções em 100 minutos de filme, que, por sua vez, foram extraídos de mais de 400 horas de material bruto, com imagens do acervo pessoal do cantor e de canais de televisão e outras instituições. Uma tarefa para a qual Pizzini decidiu se inspirar no próprio Ney.

“Quando perguntam ao Ney o segredo da boa forma dele, que já está com mais de 70 anos, ele costuma dizer que, quando faz uma refeição, sempre tenta sair da mesa com um pouco de fome. Propus então que fizéssemos um filme assim, que deixasse o público com um pouco de fome ao final da sessão”, concluiu o cineasta.

A julgar pela recepção calorosa do público da capital cearense, a missão do diretor e do próprio – Ney participou intensamente da montagem do filme – foi cumprida com louvor.


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Cine Ceará exibe 'autorretrato sensorial' de Ney Matogrosso